‘A água apagou a vinida’: petropolitana escreve crônica sobre a tragédia em Petrópolis
Texto sobre a tragédia em Petrópolis foi escrito pela petropolitana Iasmine Pereira, que é jornalista, psicanalista e escritora
A jornalista, psicanalista e escritora Iasmine Pereira, nascida e criada em Petrópolis, compartilhou as lembranças e angústias já vividas no Centro Histórico, popularmente conhecido como “vinida”.
Inspirada no vocabulário típico petropolitano e na tragédia que assolou a cidade na última semana, a crônica conta, de forma nostálgica e crítica, as memórias de uma juventude que não volta mais.
Confira o texto na íntegra:
Vamos na vinida?
Esse texto começa com água e termina com água.
Nasci numa cidade em que era impossível esquecer da chuva. Era mensal aquela fininha, que parece não molhar, mas te encharca apenas por andar 10 minutos embaixo dela.
Foto: Letícia Hermont Valle
Petropolitano que se preze anda sempre com sombrinha na bolsa. E sombrinha para fazer jus ao léxico da cidade. Por lá guarda-chuva não tem vez. Tem vez o ruço, apelido carinhoso que meus conterrâneos deram para nevoeiro. Água em outro estado.
Se você quiser ir ao centro, não ouse dizer outra coisa que não vinida, ir na cidade ou ir lá fora. Todos utilizados para se referir ao Centro Histórico. E é a história dela que vou contar.
Não exatamente a história da Cidade de Pedro, mas da catástrofe na vinida que 258 milímetros de água provocaram em 5h de chuvas.
Foto: Bruno Soares
O primeiro pluviômetro que tive contato foi uma garrafa pet com a boca cortada, onde acoplei uma régua velha de 30 cm presa com fita crepe. Deixa no quintal e mede depois de uma semana, dizia o exercício do colégio. Era inverno, e o índice não passou de 2 ou 3 milímetros. Decepção. O que eu não sabia mesmo é que esses não seriam os milímetros mais tristes da minha vida.
Descobri, naquela época, que o cálculo das chuvas era referente à quantidade de água por metro quadrado. E aí você pensa: 258 milímetros pode não ser nada, pode parecer pouco, mas sabe o que isso significa? 25,8 centímetros de água em um metro quadrado. Quase a régua de 30 cm inteira. Isso foi o suficiente para deixar mais de 900 pessoas desalojadas, 51 desaparecidas e matar mais de 204. O maior volume de chuvas em 24h, desde agosto de 1952.
A água apagou a vinida. Tomou a cidade de forma avassaladora. Uma pessoa sobreviveu porque entrou na geladeira e se deixou levar pela enxurrada. Livros, móveis, carros, sapatos, tudo o que você pode imaginar foi carregado pelas águas da chuva.
Foto: Reprodução Facebook Leandro Garcia
A chuva só não arrancou as minhas memórias da vinida. Lembranças de quando a linhagem feminina da família, eu, minha mãe e avó, saíamos juntas, todas às sextas-feiras, para ir na cidade bater perna, dar uma volta e, eventualmente, subir a Rua Teresa – que significa comprar das confecções da cidade por um preço muito mais barato do que em shoppings.
Da galeria Marchese, local referência para todos os adolescentes, a água levou quiosques inteiros, mas deixou todas as vezes em que passei por ali para ver se meu flerte da época já tinha saído do colégio, ou de quando encontrava minhas amigas para os treinos de handebol.
Foto: Bruno Soares
A lama cobriu a entrada do Museu Imperial, mas deixou a lembrança do primeiro teste de gravidez que fiz, aos 16 anos, no banheiro do jardim do palácio. Negativo. A menstruação desceu dois dias depois.
Mas o que desceu dessa vez foi o morro, outra forma afetiva utilizada para falar sobre casas feitas nas encostas. Morro é o que mais tem em Petrópolis. É morro pra todo lado. É montanha, é natureza, é cachoeira, é favela que se disfarça por ser mais ajeitada que as do Rio.
Foto: TV Brasil
E por falar em Rio, tem petropolitano que mora lá subindo com doações. Subir, é a forma abreviada de se referir à Serra de Petrópolis, uma estrada escorregadia e difícil para principiantes. Uma nova subida está sendo construída desde 2013, uma obra que nunca termina, superfaturada e que desabou faz uns anos, mas aí já é outra história.
Nunca termina também o alerta das pessoas quando chega o verão. Desmatando a Amazônia fica ainda mais perigoso. Cenário de guerra como esse nunca vi, mas já perdi as contas das vezes em que fiz mutirão para arrecadar doações quando chega janeiro e fevereiro.
Foto: Bruno Soares
Pela vinida caminhei muitos dias da minha vida. Esse é o lugar em que mais estive e o que menos retorno. Já não caminho por lá faz anos. Tem coisa destruída que jamais soube existir e seguem existindo os cantinhos que só eu vejo, porque são deles as minhas memórias.
A praça-do-homem-cansado, dessa vez o apelido é só meu, traz um Dom Pedro imponente, austero, sentado em seu trono, mas era ali que a gente tomava uns porres. Na Praça da Águia apareceu um corpo, no lugar antes habitado pelos góticos.
Foto: Arquivos Sou Petrópolis
A Catedral, com seu estilo gótico, não sofreu grandes impactos e é ponto de recebimento de doações. Aliás, se você quiser e puder, ajude. Porque esse texto termina por aqui, já que as águas dos olhos, que insistem em correr, me impedem de seguir com a escrita.
Foto: Giovani Garcia
A água permanece caindo por lá.
Por: Iasmine Pereira
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