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Coluna: Maternidade atípica

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Coluna: Maternidade atípica

Psicóloga de Petrópolis e mãe de criança com autismo narra sua vivência

Por: Flávia Gonzalez

Desde criança me impressiono com a distorção da minha imagem na lataria dos carros. Lembro de ficar encantada e incomodada com a maneira através da qual a minha figura se distorcia e continuava se distorcendo à medida em que me movia e mudava o ângulo. Faço isso até hoje. Uma brincadeira que, claramente, é uma forma de recordar, repetir e elaborar, como diria Freud.

De certo modo, vejo a maternidade atípica da forma como me via na lataria dos carros quando criança. Estou ali, sou eu, mas não sou exatamente como esperava. Me deparo com uma mudança de forma constante, tenho até algum controle atráves dos meus movimentos, mas um controle diferente, atípico.

Fotos: Divulgação e Freepik

Essa mãe atípica, desse filho atípico, sou eu. Tem traços de mim ali. Traços da criança que fui, da filha que fui, da minha mãe, da mulher que eu era quando engravidei e planejei uma série de coisas. No entanto, para além do traço tem muito mais coisa, tem a dor, a demanda de adaptações rápidas e eficientes às novas necessidades, as dificuldades e as conquistas do meu filho.

A maternidade atípica tem algo muito singular com o tempo. De fato, é um tempo lógico. Tempo que para Lacan, importante psicanalista francês, é diferente do tempo cronológico, do relógio, é o tempo do inconsciente. E o tempo na relação mãe e filho no autismo é muito próprio.

Às vezes parece que meu filho parou no tempo e todas as outras crianças estão correndo rapidamente. O impulso é ajudá-lo a correr também, ainda que, para isso, eu precise pegá-lo no colo. Mas aí entra a questão da adaptação da imagem na lataria do carro, talvez ele não precise disso, talvez eu que precise disso.

Então me moldo novamente, paro de olhar para as crianças atletas corredoras e para a minha própria imagem no carro e olho para ele. O que ele precisa? Qual é o tempo dele? Esse movimento é contínuo, mutante, libertador e difícil.

Às vezes meu filho faz inúmeros avanços e conquistas de uma hora para outra. O que parecia impossível, subitamente é apresentado como algo simples por ele. Sempre me surpreendo com essa sua capacidade. E, novamente, preciso me adequar à nova imagem na lataria do carro, pois agora ele é outro.

As mudanças não são só maravilhosas, motivos de comemoração e emoção, elas são também um aviso de que esse processo é longo, exaustivo e estranhamente encantador.

Sobre a autora

Flávia Gonzalez é psicóloga, psicanalista, especialista em autismo e mãe atípica de um filho com autismo. A profissional já trabalhava e estudava sobre o tema há 15 anos, quando seu filho nasceu. A proposta desta coluna é falar de forma pessoal sobre a sua experiência frente ao encontro dessa vivência. Mais informações podem ser encontradas em @flaviagonzalezpsicologia.

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