[Coluna] Maternidade Atípica: A praça
Psicóloga de Petrópolis e mãe de criança autista narra o descobrimento dessa condição
Por: Flávia Gonzalez
O desejo é algo que dá um lugar para o filho, um lugar naquela família, naquela comunidade, naquela sociedade. É o desejo que permite que a gente exista enquanto sujeito, o que o outro quer de nós, o que o outro quer dele em relação a nós, o que o outro projeta em nós.
Lacan fala sobre a importância de se falar sobre esse filho, esse filho que virá um dia, que está sendo gestado, ou que já nasceu. Sendo assim, a criança existe antes mesmo da gestação, ela existe no desejo.
Foto: Divulgação e Arquivos Sou Petrópolis
Agora, me pergunto, com considerável frequência, ainda que ela seja cada vez menor, qual é o lugar de desejo de um filho atípico, qual é o mecanismo que nos faz desejar e amar alguém que é diferente do que imaginávamos. Por qual processo passamos, ou estamos, já que talvez esse processo nunca acabe, para reajustar todas essas expectativas e fantasias?
O meu filho tinha menos de 1 ano quando a pandemia começou e passou boa parte da primeira infância em distanciamento social. Durante, e depois, da gestação, nós morávamos pertinho do parque Cremerie. Chegamos a ir quando ele tinha poucos meses e ali eu me vi fantasiando como seria quando chegasse o momento dele brincar, correr, fazer amigos.
Ele seria mais parecido com aquela criança ou com aquela outra, ele teria muitos amigos, ele gostaria de qual brinquedo e como eu seria como mãe naquele momento. Muitos planos. Planos que mudaram.
Mais de um ano depois, foi possível levá-lo ao parque e, na época, ainda tínhamos dúvidas se o que ele apresentava era um atraso no desenvolvimento por causa da falta de estímulos da pandemia, nada foi como eu imaginei. Meu filho parecia ter medo das outras crianças. Foi estranho, mas “era” a pandemia.
Ele entrou na creche, começou as primeiras terapias e tudo foi nos direcionando para o diagnóstico de TEA (transtorno do espectro do autismo). Um belo dia, fomos à Praça da Liberdade e o que era para ser literalmente um domingo no parque, foi um dos dias mais difíceis da minha vida. Ali, ficou claro que ele era diferente da maioria das crianças. Sim, eu, psicóloga com ampla experiência com atendimento infantil, com formação de professora, com experiência com crianças atípicas, precisei que, como falam informalmente, “desenhassem pra mim”.
Meu filho não se interessou por nenhum brinquedo, ficou num canto visivelmente confortável brincando com umas folhas e a terra. Ele não prestou atenção em nenhuma outra criança e demonstrou irritação quando, de forma ansiosa e despreparada, tentamos incentivá-lo a brincar de forma “funcional”. Ele era muito diferente da criança que eu imaginei na primeira vez que fui ao Cremerie com ele, logo, eu tinha que ser muito diferente daquela mãe.
Ainda não sei como foi esse dia para ele, mas para mim, com certeza foi um momento de silêncio. Quase o descrevi como um momento de vazio, mas na verdade foi um momento cheio, muito cheio, de silêncio. Um daqueles momentos em que as palavras não dão conta e em que a angústia toma conta.
Mais de um ano se passou desde esse dia e essa sensação está cada vez mais distante, mas ela aparece de vez em quando para me visitar. Aprendi a recebê-la bem, servir um café e trocar uma ideia com ela. Pois é na relação entre o medo e o desejo que venho me redesenhando, me “redesejando” (acho que inventei essa palavra, mas é sobre inventar mesmo), como mãe.
Sobre a autora
Flávia Gonzalez é psicóloga, psicanalista, especialista em autismo e mãe atípica de um filho com autismo. A profissional já trabalhava e estudava sobre o tema há 15 anos, quando seu filho nasceu. A proposta desta coluna é falar de forma pessoal sobre a sua experiência frente ao encontro dessa vivência. Mais informações podem ser encontradas em @flaviagonzalezpsicologia.